A Promessa

A Promessa

Por Camila Cristina Crosgnac Fracalossi


Aquelas lágrimas se esvaíam mais uma vez. Lembrava-se como nunca daquela mesma promessa, única coisa que ele tinha lhe deixado, único modo como ele a tinha marcado pela eternidade. O código genético que herdara não parecia ter a menor importância, e ela decidira jogar fora aqueles valores que as atitudes dele lhe tinham transmitido: eles eram repugnantes e assim ela os trataria. No entanto, ainda assim, tinha alguma coisa dele: a vergonha de si mesma por olhar-se no espelho e ainda poder encontrá-lo, mesmo vinte anos depois daquela promessa. Não, ela nunca seria capaz de esquecer a mágoa e o ódio pelas suas mentiras; talvez por isso ainda o encontrasse em seus oblíquos olhos cor de mel sempre tão elogiados. Elogios, elogios, elogios: quem precisava deles? Ela os odiava com uma força sobrehumana, tamanhas eram as más lembranças por eles trazidas.

“Você tem os olhos de seu pai, os mesmos belos olhos! Um dia, vai ser como ele!”, diziam em sua infância. Realmente, ela tinha partes dele. Ela agia como ele, de forma repugnante, e repugnava-se mais ainda por isso. Enquanto ele pagava por seus erros, apodrecendo em tristeza e melancolia em uma cama, ela pagava os seus sendo obrigada a cuidar dele. Ele não mais podia falar e ela tampouco lhe dizia algo, mas via em seus olhos, tão oblíquos quanto os dela, o pedido eterno de desculpas sinceras. Enxergava através deles, mas aqueles olhos lhe faziam enxergar seus próprios demônios, refletidos naquelas orbes tão sofridas, e ela se via incapaz de perdoá-lo como era incapaz de perdoar a si mesma.

Aquela promessa... ah, a promessa! Há quanto fora enganada! Esperara tantos anos por respostas e, quando elas vieram, vieram a tristeza e a dor juntas com ela. Lembrava-se ainda de quando era capaz de confiar, e lembrava-se de suas palavras exatas. “Vamos viajar. Prometa comportar-se. Deixei dinheiro por um mês para esta senhora cuidar de você”. Sim, um mês. Ele levara sua mãe, levara sua mãe por todo o sempre, sujando suas mãos odiosas com aquele sangue tão puro e inocente quanto o de um unicórnio. Mas ela só descobrira anos mais tarde, por um acaso que lhe fizera trocar o orgulho pela repugnância, quando o dinheiro acabara e a senhora colocara a pequena criança, na época com seis anos, para fora da casa. “E para onde eu vou?”, ela perguntou-lhe desesperada, os olhos cheios de lágrimas e os soluços cada vez mais freqüentes. “Para qualquer lugar, que seja! Aprenda a se virar, eles não vão voltar!”. À resposta dura, ela retrucou: “Sim, eles voltam!”. Em resposta, uma risada e uma porta batida. Pura inocência da criança... eles não voltariam. Seu pai era um assassino, era foragido, e não mais haveria de aparecer.

A infância fora dura: passara-a na rua, vivendo de esmolas e sobras, restos e lixo, frio e ódio. Desejara tão arduamente a morte daquela senhora que ela viera a morrer queimada em sua própria casa. Ela descobrira a verdade sobre sua família semanas depois, por um vizinho que a vira ajudando na feira livre. A partir daí, tornara-se dura e quieta, e nunca mais ninguém pôde ouvi-la dizer sequer uma palavra. Passara a morar com um casal que lhe adotara não-oficialmente, sem confiar neles. Cantava, às vezes, deixando o ódio levar as lágrimas que não queria chorar.

E, então, anos mais tarde, já era uma moça. Moça bonita, trabalhadora, mas seus olhos ainda lhe traíam diante do espelho: mesmo vendo-os naquele homem que tantas desculpas tentava lhe pedir, ainda o odiava. Mantinha-o vivo para fazê-lo sentir-se pior, mas ainda assim demonstrava seu ódio por ele, sem qualquer pudor, e desejava que aqueles olhos se fechassem pela eternidade, trazendo-lhe a paz.

Uns meses depois, os olhos se fecharam; a paz não veio, mas a eternidade sim, escorrendo escarlate por sua pele pálida e fria e jorrando através de onde o punhal transpassara.

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